Reprodução Assistida
Algumas palavras sobre infertilidade…
A definição que vamos empregar aqui vem do Comitê Internacional para Monitoramento de Tecnologias de Reprodução Assistida (ICMART). A infertilidade é uma doença caracterizada pela falha em estabelecer uma gravidez clínica após 12 meses de relações sexuais regulares e desprotegidas ou devido a um comprometimento da capacidade de reprodução de uma pessoa..
Gosto dessa definição, mas ela precisa ser mais bem detalhada. Este conceito deve ser aplicado às diversas formas de uniões conjugais potencialmente férteis, que incluem não apenas casais cis heterossexuais, mas todos os tipos de relacionamentos que possibilitam a fecundação de um óvulo por um espermatozoide e a implantação do embrião resultante em um útero, o que inclui, obviamente, pessoas transgênero.
Os tratamentos de infertilidade devem ser iniciados com base na história médica, sexual, reprodutiva, idade, achados físicos e testes de diagnóstico de cada casal ou indivíduo. Merecem investigação, portanto, todas as situações em que seria esperada a ocorrência de uma gravidez espontânea de acordo com a atividade sexual e os gametas presentes nas pessoas envolvidas. De acordo com o diagnóstico encontrado, técnicas de Reprodução Assistida poderão ser indicadas.
Mas o que é Reprodução Assistida, afinal?
São todos os procedimentos e intervenções que aumentam as chances de concepção e de gravidez. Classicamente, as Técnicas de Reprodução Assistida (TRA) são aquelas que envolvem a manipulação de gametas (óvulos e espermatozoides) em laboratório, com o objetivo de gravidez. Mas devemos considerar que o uso de medicamentos para indução de ovulação e coito programado, com controles ultrassonográficos, também fazem parte deste universo. Costumamos dividir a Reprodução Assistida em BAIXA e ALTA complexidade.
As técnicas de BAIXA complexidade são aquelas que aumentam a probabilidade da fecundação in vivo, isto é, dentro do organismo da pessoa com ovários e útero, sem a necessidade de manipulação de óvulos ou embriões, como o coito programado e a inseminação intrauterina. As técnicas de ALTA complexidade são aquelas que envolvem a manipulação de óvulos e de espermatozoides em laboratório, como a fertilização in vitro (FIV) convencional e a ICSI (injeção intracitoplasmática de espermatozoide).
Dependendo do diagnóstico e do desejo das pessoas envolvidas, outras tecnologias de Reprodução Assistida podem ser empregadas também, como ovodoação, embriodoação, banco de sêmen e útero de substituição.
Quando procurar um especialista em Reprodução Assistida?
Após 1 ano de tentativas de gravidez em uniões conjugais potencialmente férteis, isto é, com a existência de óvulos e espermatozoides e práticas sexuais que, em teoria, permitem o encontro desses gametas (ou após 6 meses, se a pessoa com ovários tiver idade superior a 35 anos).
É importante destacar que se você é uma pessoa com ovários em um relacionamento potencialmente fértil, com relações sexuais regulares e ciclos menstruais regulares, deve consultar um especialista em reprodução humana assistida após 12 meses tentando conceber (engravidar) ou após 6 meses se tiver mais de 35 anos. Caso sua idade seja igual ou superior a 40 anos, é necessária avaliação imediata. Isto porque, à medida em que os óvulos envelhecem, as chances de engravidar diminuem. A idade está se tornando o fator mais comum de infertilidade de origem ovariana porque muitos casais estão esperando mais para ter filhos.
Em busca da Fertilidade
Casal Cis Heterossexual
Toda jornada de fertilidade deve começar com uma avaliação completa do casal. Homem e mulher precisam ser avaliados ao mesmo tempo. Nesta etapa, exames anteriores, histórico médico e estilo de vida me ajudam a diagnosticar a real causa de infertilidade. A investigação básica das causas de infertilidade requer a realização de ultrassonografia transvaginal, histerossalpingografia, avaliação do perfil hormonal e espermograma.
Ainda assim, de acordo com a suspeita diagnóstica, exames complementares podem ser solicitados, tais como cariótipo,
hormônio antimülleriano, perfil androgênico , pesquisa de resistência à insulina, histeroscopia diagnóstica, ultrassom transvaginal com preparo intestinal, ressonância magnética de pelve, videolaparoscopia, pesquisa de trombofilias, exame de fragmentação de DNA espermático, ultrassonografia da bolsa escrotal, etc.
Após a primeira consulta e a realização de exames, o plano terapêutico do casal é elaborado e uma conduta particularizada é indicada, empregando ou não as técnicas de Reprodução Assistida (TRA).
“É importante destacar que o tratamento de Reprodução Assistida deverá avaliar individualmente cada paciente, levando em consideração as possibilidades biológicas e o desejo dos envolvidos, de forma a respeitar ao máximo a vivência de cada um.”
Reprodução Assistida para pessoas LGBTQIAPN+
Mesmo entre médicos especialistas em Reprodução Assistida, existem muitas dúvidas e confusão de conceitos no que se refere ao planejamento reprodutivo de pessoas LGBTQIAPN+.
Em essência, apesar das diversas possibilidades de união conjugal (e com potencial de fertilidade distintos), todo o raciocínio empregado neste planejamento visa a responder estas 3 perguntas fundamentais:
Sabemos que as pessoas envolvidas, sejam cis, trans, não-binárias, podem ter os mesmos ou diferentes órgãos reprodutores ou gametas. Às vezes, para que a gravidez seja possível, é necessária a utilização de gametas doados ou mesmo a participação de uma outra pessoa, com útero, para gerar a criança.
Ainda que existam os dois tipos de gametas, precisamos saber se as práticas sexuais podem permitir o encontro do óvulo com o espermatozoide dentro do sistema reprodutor da pessoa com útero.
Não é a simples existência de útero que define quem vai engravidar. Precisamos entender se existe o desejo de gestar.
Fica claro, portanto, que a jornada reprodutiva LGBTQIAPN+ deve sempre ser particularizada de acordo com as características das pessoas envolvidas. Abaixo, listo apenas alguns exemplos, para ilustrar a nossa conversa, sem a pretensão de esgotar todas as possibilidades.
Casal Homoafetivo Feminino Cisgênero
O casal homoafetivo feminino precisa passar por uma avaliação de fertilidade que comprove a capacidade reprodutiva de ambas as parceiras? Esta é uma boa pergunta. Uma vez que não existe possibilidade biológica de gravidez espontânea, a simples aplicação de uma técnica de Reprodução Assistida pode resultar em gravidez, criando condições para a concepção que até então nunca haviam existido.
Entretanto, a realização de alguns exames pode trazer informações detalhadas sobre os órgãos reprodutores das pessoas envolvidas e permitir que o especialista indique a melhor técnica. Por exemplo, se houver obstrução das trompas, as chances de sucesso com a inseminação intatuterina são muito remotas. Por este motivo, a realização ou não de exames deve ser sempre discutida com o casal.
Esta avaliação da fertilidade feminina envolve a realização de exames de sangue, ultrassonografia transvaginal, histerossalpingografia e avaliação do perfil hormonal para avaliação da reserva ovariana. Em caso de outras suspeitas diagnósticas, exames complementares podem ser solicitados.
Um dos tratamentos de Reprodução Assistida para casais cis homoafetivos femininos é a inseminação intrauterina (IIU). Neste caso, o casal decidirá qual das parceiras engravidará, sendo utilizados espermatozoides oriundos de bancos de sêmen (doador anônimo) ou de parente em até quarto grau da parceira que não engravidará (evitando assim consanguinidade). A mulher que tentará engravidar passará pelo processo de indução da ovulação e os espermatozoides serão processados em laboratório e introduzidos na cavidade uterina.
Outra opção de Reprodução Assistida para casais homoafetivos femininos é a fertilização in vitro (FIV). Assim como para a inseminação intrauterina, a origem do sêmen poderá ser um banco de doadores anônimos ou um parente em até quarto grau. A mulher que engravidará poderá ser a mesma a partir da qual os óvulos foram obtidos ou ser realizada a chamada gestação compartilhada (ou método ROPA: recepção de óvulos da parceira), na qual uma das mulheres receberá em seu útero o embrião resultante da fertilização do óvulo da parceira.
Casal Homoafetivo Masculino Cisgênero
Geralmente, é realizada uma avaliação da fertilidade masculina padrão (espermograma) e outra aprimorada, quando há indicação. Fazem parte dela exames adicionais, como avaliação hormonal, de teste de função espermática e de ultrassonografia de bolsa testicular.
A Reprodução Assistida para casais homoafetivos masculinos requer o auxílio do útero de substituição, conhecido também como barriga solidária ou cessão temporária de útero. Para estes casais, a mulher que gestará o bebê deve pertencer à família, podendo essa ligação familiar ser de até quarto grau, ou seja, podem ser barriga solidária mães, irmãs, avós, tias ou primas de um dos envolvidos. Quando não existe tal possibilidade, pessoa sem parentesco também poderá ceder temporariamente o útero mediante autorização do Conselho Regional de Medicina.
Os óvulos devem ser obtidos por meio de ovodoação, ou seja, é necessário adquirir o material genético feminino em clínicas de reprodução humana assistida, a partir de doadoras anônimas ou de parente em até quarto grau do parceiro cujos espermatozoides não serão usados (evitando assim a consanguinidade).
A escolha da doadora anônima respeitará as características físicas dos parceiros, sendo que um deles será o progenitor, ou seja, o sêmen de apenas um será utilizado no processo de fertilização in vitro (FIV).
É importante ressaltar que, de acordo com a resolução do Conselho Federal de Medicina, a doadora dos óvulos não poderá ser a mesma pessoa que cederá temporariamente seu útero para a gravidez.
“É preciso discutir as opções de tratamento e dar visibilidade a outras formas de família, para que cada vez mais as pessoas tenham acesso e possam atingir o sonho da maternidade e/ou paternidade sem julgamentos da sociedade.”
Homem Transgênero
Homens transgênero, em geral, podem engravidar pois possuem ovários e útero como órgãos genitais internos. Caso desejem engravidar em algum momento da vida, costuma-se recomendar o congelamento de óvulos antes do início do tratamento de hormonização. Isto porque o uso de hormônios androgênios impossibilita o acompanhamento adequado da função e da reserva ovariana ao longo dos anos e uma eventual queda precoce da fertilidade pode passar despercebida. Ainda assim, sabe-se que função ovariana, quando não comprometida, costuma se reestabelecer após a suspensão da hormonização. Em homens trans que não congelaram previamente seus óvulos, orienta-se a suspensão dos hormônios 3 meses antes do início do tratamento de Reprodução Assistida.
Quando o casal é formado por homem transgênero e uma mulher cisgênero, o tratamento de reprodução assistida é equivalente ao de um casal cisgênero homoafetivo feminino. Nesse caso, deve-se decidir a partir de quem os óvulos serão obtidos e quem irá engravidar, havendo a possibilidade de gestação compartilhada.
Uma outra possibilidade é o casal homoafetivo formado por homem trans e homem cis. O planejamento, nestes casos, dependerá das práticas sexuais (que podem ou não permitir o encontro entre óvulo e espermatozoide) e, obviamente, do desejo ou não de gestar por parte do homem trans.
Mulher Transgênero
Mulheres transgênero também podem ter filhos biológicos, porém não há a possibilidade de gestar o bebê. Com o auxílio da Reprodução Assistida, seja pela coleta de espermatozoides para inseminação intrauterina ou com o emprego da fertilização in vitro (FIV), é possível que ocorra uma gravidez, sendo necessário útero de substituição para gerar o bebê, caso não faça parte do casal uma pessoa com útero que possa e deseje engravidar.